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NOTAS SOBRE OS PROCESSOS DE (RE)PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS URBANOS CAPITALISTAS E O CASO DO MUNICÍPIO DE A

O crescimento dos espaços citadinos e o fenômeno urbano têm sido amplamente estudados pela geografia e pelas ciências sociais. A literatura evidencia que uma análise crítica desses espaços considera que a urbanização tem consubstanciado um meio fundamental para absorção dos excedentes de capital e de trabalho ao longo de toda a história do capitalismo (HARVEY, 2014). Não obstante, em sociedades heterônomas capitalistas, o que normalmente ocorre é que os usos do espaço urbano são mediados pelo valor de troca em detrimento ao seu valor de uso(1), o que implica a seleção, via mercado, dos sujeitos sociais capazes de acessar a habitação, as feições produtivas e de circulação, as dimensões do viver, as possibilidades de sociabilidade, a apropriação coletiva dos espaços, as infraestruturas técnicas e sociais, enfim, todos os recursos necessários para a reprodução da vida em sociedade.


Similarmente, Corrêa (1989) coloca o espaço urbano como produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem o espaço. As ações que produzem o urbano são concretas e não aleatórias, derivam da dinâmica de acumulação do capital, das necessidades de reprodução das relações de produção, e dos conflitos de classe que dela emergem. Assim como Corrêa (1989), Lefebvre (2001) também refere que os principais agentes que fazem e refazem a cidade são os grandes capitalistas proprietários dos meios de produção, os proprietários fundiários, promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos.


A ação desses agentes se faz dentro de um marco regulatório jurídico que não é neutro, refletindo o interesse dominante de um dos agentes, comumente o dos grandes industriais ou do mercado imobiliário. Convém também apontar que, muitas vezes há conflitos entre os interesses desses dois agentes e a sua resolução se dá por intervenção do Estado, agente essencial para minimizar os conflitos de classe, que normalmente beneficia os proprietários dos meios de produção, implicando a continuidade do processo de acumulação e a reprodução das relações de produção (CORRÊA, 1989).


Apesar das singularidades de cada um desses processos(2) de produção do espaço urbano e dos conflitos de interesse que aconteceram e acontecem em diversas partes do planeta, sobretudo quando analisamos o que ocorre em países “centrais” e em países “periféricos”, o que a produção do espaço urbano sempre ocasiona é, tanto lá como cá, a (re)colocação mais ou menos forçada de pessoas – via de regra pobres – em espaços residenciais de infraestrutura precária e com baixa acessibilidade às fontes de poder, aos espaços de troca e aos bens de consumo coletivo, reforçando quadros de segregação sócio-espacial. Para Alvarez (2018), a segregação constitui um dos fundamentos da produção do espaço capitalista, sendo não apenas resultado deste processo, mas como parte de seu conteúdo.


Dados os preâmbulos necessários, identificamos uma expressiva expansão econômica e respectiva expansão urbana recente no município de Araquari no estado de Santa Catarina. Algumas áreas do município têm se configurado como objeto de disputa territorial, ideológica e econômica entre sujeitos sociais com interesses e finalidades distintas. O resultado dessa disputa coloca o município em certa precariedade de infraestruturas quando comparado a Joinville(3), o município vizinho, caracterizando iníqua segregação sócio-espacial, conforme introduziremos a seguir.


Nos últimos dez anos o município de Araquari (33.867 habitantes) apresentou um crescimento demográfico em torno de 53% e foi, particularmente entre 2015 e 2016, o município catarinense que mais cresceu demograficamente (4,35%). Acompanhando este significativo aumento demográfico, a economia também apresenta uma relevante ampliação em 2013 quando são registradas 577 empresas a mais do que em 2010, perfazendo um total de 1394 empresas ativas no município. Em 2014, o grupo BMW, multinacional da indústria automobilística europeia, implantou uma fábrica de produção de automóveis em Araquari, empregando cerca de 1.200 trabalhadores(4). Outrossim, essa aparente prosperidade refletiu também na arrecadação tributária municipal, que passou de R$ 34,3 milhões em 2010 para R$ 79,1 milhões em 2014. O Imposto Sobre Serviços (ISS), um dos mais importantes tributos municipais segundo Cesare (2005), arrecadou 97,3% a mais nesse período(5).


Apesar disso, em 2015, uma matéria veiculada em jornal local(6) relatou que: “Por falta de infraestrutura, a população já está preocupada com o crescimento desordenado da cidade, e até mesmo políticos admitem que existem questões urgentes a serem resolvidas” (grifos nossos). A mídia, parcelas significativas da sociedade, e até mesmo planejadores comumente relacionam os problemas do fenômeno urbano à desordem territorial ou à falta de planejamento. Entretanto, Castells (1983) e Corrêa (1989) advertem que o argumento da organização espacial não passa de um discurso tecnocrático, impregnado de ideologia das classes sociais dominantes. Para os autores, há de se tomar cuidado para que a intervenção dos aparelhos de Estado, sobre à organização do espaço, não se reduza à “planificação” urbana. Segundo eles, os planos urbanísticos costumam caracterizar a intervenção do político como referente não ao sistema urbano, mas sim à uma instância ideológica de reduzida eficácia social. Assim sendo, a planificação e intervenção urbanística, da forma como comumente se pratica, estão distantes de solucionar a problemática da segregação sócio-espacial.


Na mesma reportagem, Clenilton Carlos Pereira (PSDB), o atual prefeito do município, declara que com a implantação de novas empresas em Araquari, houve aumento da arrecadação de tributos, diz ele: “A receita orçamentária praticamente quadruplicou”. Entretanto, na continuação, Pereira admite que: “Precisamos melhorar a mobilidade urbana, especialmente com a duplicação da BR-280 e a criação de uma região metropolitana com Joinville. Também precisamos trabalhar na estruturação de energia, água e saneamento, que são bastante precários na cidade” (grifos nossos).


O que se revela na matéria jornalística, tanto do ponto de vista do poder executivo do município quanto de uma parcela da população local é que, se por um lado, Araquari cresceu e ampliou a sua riqueza em razão do número de empresas e tributos, por outro, isso não contribuiu com a melhora da qualidade de vida da população quando esta é medida pela capacidade do Estado em atender as demandas por infraestrutura, serviços e mobilidade urbana.


Em 2017, o IBGE elaborou uma tipologia intra-urbana que pretendeu estimar a qualidade de vida para diferentes setores geográficos(7) dos municípios que compõe cada uma das regiões metropolitanas brasileiras. Para tal pesquisa, o IBGE utilizou a renda familiar do chefe do domicilio, o saneamento básico domiciliar (coleta de esgoto e lixo), o nível educacional, o acesso a computador e a internet domiciliar, os residentes em domicilio de alvenaria e o percentual de pessoas com densidade com mais de dois moradores por dormitório, como indicadores de qualidade de vida.


Nessa tipologia (Figura 1), Araquari aparece como espaço periférico do município de Joinville, dado que, determinado setor geográfico central de Joinville agrupa altos indicadores de “qualidade de vida”. Além disso, destacamos que não foram considerados como fatores relevantes para a avaliação da qualidade de vida: a concentração das atividades produtivas, dos empregos, dos centros comerciais, das escolas, dos equipamentos de saúde e lazer, a infraestrutura de transporte dos municípios, e a qualidade oferecida pelas operadoras de transporte público, entre outros aspectos relevantes para a reprodução da vida em sociedade.


Figura 1: Tipologia de caracterização da qualidade de vida no espaço urbano de Joinville e Araquari.

Fonte: IBGE (2017).



Diante da exposição de marcantes assimetrias sócio-espaciais em Araquari quando comparada ao município vizinho, pressupondo que a condição sócio-espacial atual de Araquari foi historicamente determinada pela ação de diversos agentes e de que essa produção ocorre a partir de conflitos mediados pelo Estado, entendemos que alguns questionamentos se impõem, elencaremos alguns que consideramos relevantes. O primeiro: como ocorreu, e como ocorre, o processo de produção do espaço daquilo que hoje é considerado território político-administrativo do município de Araquari? O segundo: quais foram os conflitos mais significativos entre os agentes produtores desse espaço e, quais foram os agentes mais beneficiados pela ação do Estado nesse processo? O terceiro: Quais ações do Estado contribuíram para (re)produção da segregação sócio-espacial no espaço urbano de Joinville e Araquari, considerando a localização dos elementos (equipamentos de saúde, unidades de ensino, transporte coletivo, atividades produtivas e centros comerciais) que não foram incluídos na tipologia intra-urbana proposta pelo IBGE?


Para contribuir para a aproximação da resposta a esses questionamentos, estamos nos empenhando em uma pesquisa dissertativa – a ser concluída em 2021 – onde investigaremos os processos de produção do espaço urbano em Araquari no final do século XX e no início do século XXI. A pesquisa será mais enfática no século XXI, onde previamente apuramos que houve acentuação na urbanização, na industrialização e nos conflitos envolvendo a terra dentro do espaço político-administrativo de Araquari.



NOTAS

  1. As noções de valor de uso e valor de troca dos espaços urbanos são desenvolvidas por vários pesquisadores, destacamos Henry Lefebvre (2001) e David Harvey (1973).

  2. Quando nos referirmos a processos de produção do espaço urbano, estaremos adotando a noção desenvolvida por Milton Santos (2004). Para o autor, processo é uma ação que se realiza continuamente, visando um resultado qualquer, implicando tempo e mudança. Os processos acontecem dentro de uma dada estrutura social e econômica e resulta das contradições internas da mesma.

  3. Joinville é um município que faz fronteira político-administrativa ao norte de Araquari. Joinville é o maior polo industrial de Santa Cataria e o terceiro maior da Região Sul brasileira bem como o município mais populoso do estado, com uma população estimada em torno de 569.645 habitantes (IBGE, 2017). Joinville e Araquari compartilham de espaços conurbados, de fortes vínculos econômicos e há notável deslocamento cotidiano das pessoas entre os dois municípios.

  4. Dados do parágrafo obtidos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

  5. Dados obtidos do Portal da Transparência de Araquari.

  6. Matéria intitulada “Cidade que mais cresceu em Santa Catarina, Araquari luta por melhorias”, publicada no jornal Notícias do Dia, de Joinville em 2015.

  7. Setor geográfico entendido como um conjunto de bairros com características próprias e “personalidade”, conforme Marcelo Lopes de Souza (2013).



REFERÊNCIAS


ALVAREZ, Isabel Pinto. A segregação como conteúdo da produção do espaço urbano. In: VASCONCELLOS, P. A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (org). A Cidade Contemporânea: segregação espacial. São Paulo: Contexto, 2018, p. 111-126.

CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1983.

CESARE, Cláudia de. O cadastro como instrumento de política fiscal. In: ERBA, D. A.; OLIVEIRA, F. L.; LIMA JUNIOR, P. N. (org). Cadastro multifinalitário como instrumento de política fiscal e urbana. Rio de Janeiro: 2005, p. 39-70.

CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1989.

HARVEY, David. Social Justice and the city. Londres: Edward Arnold, 1973.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Edusp, 2004.

SOUZA, Marcelo Lopes de. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016.


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