Desde o início de março de 2020 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma pandemia causada pelo novo Coronavírus, chamado de SARS-Cov-2. Naquele momento o número de contaminação pelo mundo era da ordem de 118.319 casos confirmados e 4.292 mortes. Em menos de um mês já tínhamos chegado ao número de mais de um milhão de casos confirmados e mais de cinquenta mil óbitos (OMS, 2020). Hoje (11/05/2020) o número sofreu um aumento exponencial numa ordem de 4.132.365 casos confirmados e 283.387 mortes, com muitos locais comprovadamente subnotificados em pelo menos dez vezes os números oficiais. Isto reitera os prognósticos feitos no início da Covid-19, demonstrando que os estudos da Imperial College estavam corretos sobre a velocidade de propagação do vírus e a importância do isolamento para contê-lo.
Muito se tem falado sobre isso desde então, desde o efeito das economias em paralização até as pessoas em quarentena dentro de suas casas, pelo menos aquelas que têm casa e opção de estar em isolamento. As sinfonias pelas janelas e sacadas da “devastada” Itália, já parecem estar em um passado longínquo, assim como as imagens de caminhões do exército carregando corpos de pessoas que não puderam se despedir de seus familiares antes da sufocante morte e que seguiam para a cremação sem sepultamento. Há um mês, o vírus não estava nos assolando com tanta força, parecia mesmo que mais uma vez o país passaria incólume por esta catástrofe global. Mas, os corpos nas ruas do Equador foi o primeiro sinal que a ameaça tinha transpassado a fronteira do nosso lado. Manaus foi a primeira cidade a entrar em colapso na saúde e nos cemitérios, mas, aqui adicionamos um agravante que se espalha tão rapidamente quanto o vírus, as fakenews e a ignorância, nossas velhas conhecidas desde a eleição de 2018. Graças a elas, temos visto pessoas à beira das covas coletivas abrindo caixões lacrados para provar que estão enterrando seus parentes e não pedras (uma absurda estratégia que seria utilizada para aumentar as estatísticas de mortes). Os profissionais da saúde, aplaudidos e respeitados em todos os cantos do mundo, aqui são contestados e agredidos verbal e fisicamente quando protestam por melhores condições de trabalho. Um Ministro da Saúde trocado no meio da pandemia por estar fazendo seu trabalho, e o novo já demonstrou ter as mesmas habilidades que o presidente com as máscaras de proteção, além de defender que a escolha entre salvar a vida de uma pessoa idosa ou um jovem é balizada pelo lucro. Isso prova que, em grande medida, a vida e a morte é uma inclinação política e, especialmente de política econômica, quando os leitos de UTI e respiradouros não são suficientes. Bolsonaro ainda permanece como o único presidente que desdenha da seriedade da doença, desde a “gripezinha” até a alegação “E daí?” e “Eu não sou coveiro” quando questionado sobre os números de mortes que ultrapassaram a China. No momento em que o país atinge mais de onze mil mortes, ele anda de jet-ski no lago Paranoá e se utiliza de churrascos falsos como cortina de fumaça. Até mesmo Trump mudou de discurso depois que os Estados Unidos passaram a ser epicentro da pandemia, tendo que engolir a gana de abrir a economia num cenário descontrolado com quase 1/3 do total dos casos confirmados e oitenta mil mortes.
Ainda não se sabe as reais dimensões desta pandemia e até onde chegaremos, fato é que ela é a primeira que enfrentamos no mundo globalizado e predominantemente urbano (SPOSITO e GUIMARÃES, 2020), num cenário geopolítico muito distinto daquele apresentado pela Gripe Espanhola de 1918. As informações sobre recomendações, formas de se proteger etc. são diariamente atualizadas. Tudo é novo, até mesmo o discurso Keynesiano dos neoliberais de plantão, que “imploram” pela “mão nada invisível” do Estado pelo mundo. Aparentemente, somente Paulo Guedes ainda continua seguindo a cartilha de Chicago, fazendo barganhas com a vida dos brasileiros dificultando o acesso ao auxílio emergencial que garantiria minimamente que as famílias se mantivessem em casa[1]. Ao contrário disso, mantém um discurso totalmente anacrônico que parece querer justificar a necessidade de medidas ainda mais conservadoras, indo mais uma vez na contramão de todas as políticas adotadas globalmente com bons resultados. Por outro lado, os bancos e o grande capital financeiro são socorridos rapidamente com bilhões de Reais. Parece que as condicionantes só aparecem quando se trata de dinheiro para salvar a população, pois a liquidez nos bancos está garantida através da compra de pacotes e carteiras de empréstimos bancários. A política restritiva de salários e investimentos públicos é contrária a qualquer possibilidade adequada de retomada da economia. A ciência, a Saúde e a Educação são as grandes vítimas em prol dos bancos e dos setores altamente financeirizados.
Em termos gerais, o que se sabe sobre tal doença é que o isolamento social é a única solução com resultados reais e visíveis para evitar a propagação, uma vez que não se tem vacina nem remédios aprovados contra a mesma[2] (IAMARINO, 2020). De acordo com os estudos de Kraemer et al. (2020) as medidas de mobilidade e controle de circulação de pessoas na China, foi o principal fator utilizado para evitar a disseminação da doença, evitando inclusive que ela se espalhasse criando múltiplos focos para além da província de Hubei. Dessa forma, o distanciamento social e controle da circulação foram considerados por este grupo de estudiosos, o método mais eficaz de combate ao vírus nas primeiras semanas, seguido de testes em massa num segundo momento e intervenções estatais que permitam que as pessoas permaneçam em segurança evitando o contágio rápido e, consequente colapso do sistema de saúde. No gráfico a seguir (Gráfico 1) é possível perceber que o único país que implementou as medidas supracitadas de forma rápida e eficiente, é também o único a ter controle sobre a propagação do vírus. Numa comparação bem simplificada, no dia 24/01/2020 a China contava com oitocentos e trinta casos confirmados e os EUA com um, em 24/02/2020 o número na China estava em 77.262 casos e os EUA com apenas 35. A China com todo o poder estatal de construção de hospitais em tempo recorde, disponibilização de testes em massa gratuitos e isolamento rápido de toda a província que era foco da doença, mantém desde o meio do mês de março um número constante de casos que hoje está em 88.423. Os EUA (como também outros exemplos do mundo ocidental) demorou a tomar as devidas medidas de contenção. Até bem pouco tempo, o presidente Trump sustentava um discurso muito semelhante ao que é reproduzido por Jair Bolsonaro aqui no Brasil e, hoje o país norte-americano se tornou o novo epicentro da doença, com 1.365.760 casos confirmados e mais de 80.000 mortos (OMS, 2020).
Gráfico 1 – Comparação por total de casos confirmados de Covid-19 entre diversos países.
Fonte: https://www.bing.com/covid. Acesso em 11/05/2020.
O papel da bicicleta
No Brasil, o discurso do presidente continua no sentido de incitar às pessoas para as ruas desde o fracassado argumento de que “o Brasil não pode parar”, o mesmo que Milão adotou e culminou na calamidade noticiada. O isolamento e os períodos de quarentena foram aplicados de forma gradativa e os serviços essenciais continuaram sendo desenvolvidos e endossados pelo governo dos estados e municípios, o que inicialmente nos colocou um passo à frente e segurou o ritmo de contaminação por um tempo. A mobilidade urbana foi e tem sido diretamente afetada, uma vez que evitar aglomerações, como é o caso do que acontece no cotidiano brasileiro de lotação dos transportes coletivos, é um dos principais desafios. Além disso, a modalidade homeoffice adotada em alguns casos diminuiu significativamente o número de deslocamentos diários. Mas, quem precisa trabalhar e/ou sair de casa se locomove como? A bicicleta nos é apresentada como um instrumento de grande utilidade na recuperação de desastres, por ser um veículo que se comporta como uma opção viável para a locomoção urbana em épocas de instabilidade global. De acordo com Laker (2020) isto já ocorreu diversas vezes como em 1973 durante a crise do petróleo e nos terremotos em Tóquio (2011) e Cidade do México (2017). Tanto pela questão econômica, uma vez que para boa parte da população, estar em casa significa não ter renda (por isso a importância do auxílio emergencial), quanto pela questão de ser um método de locomoção individual que evita o contato com outras pessoas, a bicicleta também está sendo considerada de extrema importância no momento atual e no pós-pandemia. Tanto que temos recomendações diretas da OMS que toda locomoção necessária seja feita prioritariamente caminhando ou de bicicleta (WHO, 2020).
A cidade de Bogotá na Colômbia, que já apresentava uma malha ciclovária de 550 quilômetros, aprovou mais 110 quilômetros temporários dessas estruturas como estratégia de locomoção numa ação contra a propagação do coronavírus, assim como aconteceu em Berlim.
No primeiro dia das novas ciclovias estendidas, o gabinete da prefeitura informou que o número de usuários do BRT TransMillenio caiu 23% durante o período da manhã - embora o declínio também possa ser atribuído à campanha incentivando as pessoas a ficarem em casa - e foram observados ciclistas usando as novas rotas para bike, principalmente na hora do rush da manhã e da noite (MOBILIZE, 2020).
No Paraná, o Deputado Estadual Goura Nataraj enviou no último dia 27/03/2020 uma proposta de Plano de Contingência em prol da Mobilidade Urbana contra o Covid-19, que destaca a utilização da bicicleta como meio mais seguro de se locomover durante este período de crise pandêmica (MANDATO GOURA, 2020). O objetivo desse documento é fomentar o incentivo do uso da bicicleta, por meio de alternativas e possibilidades de ampliação da estrutura cicloviárias temporárias, garantindo mais segurança aos ciclistas. Da mesma forma, um decreto recente do Governo do Paraná e da Prefeitura de Curitiba, considerou bicicletarias e oficinas de bicicleta como serviços essenciais no enfrentamento desse momento, autorizando que permaneçam abertas. O mesmo aconteceu em cidades como Nova York, São Francisco, Berlim e no Reino Unido (LAKER, 2020).
Além disso, tem-se percebido um movimento em direção a encontrar soluções de locomoção também para o período pós-pandemia, no momento em que os países que estão conseguindo controlar a doença pensam em estratégias para reabertura gradativa do comércio, escolas, entre outros. O transporte coletivo, que já vinha apresentando declínio de usuários em todo o mundo, deve sofrer um duro golpe por representar um local de aglomeração e, muitas pessoas, por medo de se contaminar, devem procurar outros meios de locomoção, como o veículo privado, por exemplo. No entanto, estudos apontam para uma correlação entre altas taxas de poluição e a morte por Covid-19. Assim, a pretensão de alguns governos é não deixar uma forma de transporte que causa tanto dano à qualidade do ar, seja ainda mais utilizada, quando paira sobre eles um vírus que ataca os pulmões (O’SULLIVAN, 2020). Cidades como Milão, Bruxelas, Roma e Paris, já apresentam estratégias voltadas para a priorização de pedestres e ciclistas em vias antes voltadas para os carros, além da adoção de limites de velocidade de 30km/h no centro. Muitas estão incentivando ou mesmo liberando o uso de bicicletas compartilhadas e oferecendo suporte, inclusive financeiro, para os novos ciclistas. Isto tudo, porque o momento é propício para que se repense a mobilidade urbana e evite uma paralisia total do sistema rodoviário com a aderência massiva aos automóveis. No entanto, é preciso que bases materiais e decisões políticas sejam oferecidas no sentido de incentivar formas de transporte alternativas e facilitar a escolha das pessoas.
Fonte: MANDATO GOURA, 2020.
Considerações finais
A discussão sobre mobilidade, de um modo geral, exige uma nova perspectiva de análise que deixa de lado a forma clássica de causalidade com o transporte no centro da discussão e pressupõe uma relação dialética que leva em consideração as pessoas, por entender que são elas que possuem as motivações que induzem os deslocamentos. A bicicleta têm se mostrado como a forma mais eficiente, democrática e saudável de se deslocar pelo espaço urbano, sobretudo em contextos de crises como o que se tem visto atualmente com a pandemia do coronavírus e a necessidade de se deslocar evitando aglomerações e de forma econômica, num momento de restrições financeiras tão severas que atingem, como sempre, os mais vulneráveis.
O isolamento social é a única forma de combate à disseminação do vírus, somada aos testes em massa e intervenções estatais que garantam a segurança e estabilidade financeira de pessoas e pequenas e médias empresas, além de medidas de logística, conversão produtiva e importação emergencial, que não foram objeto de análise do presente artigo. Dessa forma, o mantra que deve ser levado em consideração até que tenha um controle da situação é “Fique em casa”, mas, se precisar se deslocar para atender situações de abastecimento e ajuda emergencial, procurem formas seguras de se locomover e, neste contexto, a bicicleta possui papel fundamental, agora e no contexto pós-pandemia.
Notas
[1]O que demonstra o total desconhecimento da realidade do país, pois o governo projetou que 25 milhões de brasileiros pediriam o auxílio, quando, em razão do índice de informalidade de mais de 40%, o pedido foi de 96 milhões. Além disso, a centralização de toda essa atividade na Caixa econômica Federal saturou o sistema e provocou aglomerações das pessoas em filas enormes no banco para conseguir receber o dinheiro, seja por falta de informações, seja pela dificuldade em se acessar os aplicativos, seja por erros do governo federal em cadastros existentes. A primeira parcela ainda não foi paga para todos que solicitaram e, a segunda parcela que havia sido anunciada para o dia 27/04, ainda não tem data para iniciar os pagamentos.
[2]A corrida pela descoberta de vacinas e medicamentos está em todo o mundo, recentemente Hong Kong anunciou que um coquetel parece acelerar a cura (ainda que a taxa de letalidade de mantenha), a descoberta de anticorpos e o início de testes com vacinas também acontece, mas, nada ainda conclusivo para se propagar em massa.
Referências
BIKE É LEGAL. A bicicleta é solução contra a crise?. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CLX48iJSVPs>. Acesso em 22/03/2020.
IAMARINO, Átila. O que o Brasil precisa fazer nos próximos dias. Live Coronvírus 20/03/2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zF2pXXJIAGM>. Acesso em 21/03/2020.
KRAEMER, M. U. G.; YANG, C.; GUTIERREZ, B.; WU, C.; KLEIN, B.; PIGOT, D. M.; PLESSIS, L.; FARIA, N. R.; LI, R.; HANAGE, W. P.; BROWNSTEIN, J. R.; LAYAN, M.; VESPIGNANI, A.; TIAN, H.; DYE, C.; PYBUS O. G.; SCARPINO. S. V. The effect of human mobility and control measures on the COVID-19 epidemic in China. Science10.1126/science.abb4218 (2020), 27 de março de 2020.
LAKER, Laura. In a Global Health Emergency, the Bicycle Shines. Citylab, 25 de março de 2020. Disponível em: <https://www.citylab.com/perspective/2020/03/coronavirus-bike-lane-emergency-transportation-covid-19/608725/>. Acesso em 11/05/2020.
MANDATO GOURA. Plano de Contingência destaca a bicicleta como alternativa de transporte na pandemia do Covid-19. 30 de março de 2020. Disponível em: < https://mandatogoura.com.br/plano-de-contingencia-destaca-a-bicicleta-como-alternativa-de-transporte-na-pandemia-do-covid-19/>. Acesso em 02/04/2020.
MOBILIZE BRASIL. Bogotá expande ciclovias em estratégia contra coronavírus. Associeted Press. 20 de março de 2020. Disponível em: <encurtador.com.br/jrA07>. Acesso em 20/03/2020.
OMS – Organização Mundial de Saúde. Coronavirus disease (COVID-2019) situation reports. Disponível em: < https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/situation-reports/>. Acesso em 03/04/2020.
O’SULLIVAN, Feargus. Europe’s Cities Are Making Less Room for Cars After Coronavirus. Citylab, 22 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.citylab.com/transportation/2020/04/coronavirus-reopen-cities-public-transit-car-free-bike-milan/610360/>. Acesso em 06/05/2020.
SPOSITO, Maria da Encarnação; GUIMARÃES, Raul Borges. Por que a circulação de pessoas tem peso na difusão da pandemia. UNESP, São Paulo: 26 de março de 2020. Disponível em: https://www2.unesp.br/portal?fbclid=IwAR1NIn23fO95a_WaJlTbyHAVt_RE161JLtnFtIAf18hRe3pKq8wVQ1kfJJ4#!/noticia/35626/por-que-a-circulacao-de-pessoas-tem-peso-na-difusao-da-pandemia. Acesso em 27/03/2020.
WHO – World Health Organization. Moving around during the COVID-19 outbreak. Disponível em: <https://who.canto.global/v/coronavirus/s/MFSQ0?viewIndex=1&column=document&id=94covo1rdl4snc0dvh3f7uc956>. Acesso em 06/05/2020.
Mestre em Geografia Laís Barbiero
Graduada em Geografia (UEM)
Esp. em Gestão Ambiental e Des. Sustentável (FATEC)
Doutoranda em Geografia (PPGG-UFSC)
Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística – LABCIT (UFSC)
Grupo de Estudos sobre Dinâmicas Regionais e Infraestrutura – GEDRI (CNPq)