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VÍRUS EXPÕE FALHA SISTÊMICA NA UNIÃO EUROPEIA


John Hopkins University/Reprodução

Uma das consequências da pandemia de COVID19 será a de ter posto à vista de todos que a União Europeia (UE) é um projeto falho do ponto de vista dos interesses da generalidade dos povos europeus. Isto terá enormes consequências políticas e econômicas, que terão impactos importantes à escala mundial. Outra consequência será pôr em evidência a fragilidade do neoliberalismo globalista que nos tem regido e como chegou a extremos que o esvaziam de qualquer credibilidade intelectual e legitimidade moral.


No momento em que escrevo, próximo de Lisboa, centenas de milhões de europeus estão com a sua vida suspensa e sujeitos a regimes mais ou menos coercivos de permanência nas suas residências, com as suas saídas limitadas a situações específicas determinadas pelas autoridades. Em Portugal, isso inclui ir trabalhar, se a atividade profissional não puder ser feita por teletrabalho; ir abastecer-se de produtos básicos, no supermercado ou na farmácia, por exemplo; levar cães à rua e fazer exercício físico (excluindo atividades em grupo).


Na atual situação, isto faz parte de uma estratégia de diminuição drástica do contato social que é necessária para conter a disseminação do vírus e salvar muitas vidas, porventura dezenas de milhares em Portugal e centenas de milhares ou mesmo milhões por toda a Europa. Estão mais em risco idosos (e pessoas com problemas de saúde específicos) e os europeus são uma população muito envelhecida. O problema é o que nos conduziu até esta situação, em que a principal resposta que os países europeus têm para oferecer às suas populações é, de momento, algo típico da Idade Média, quando a higiene e a medicina não tinham ao seu alcance o conhecimento e os recursos atualmente existentes.


O surto de corona vírus surgiu na China em dezembro e, durante cerca de três semanas, foi abafado pelas autoridades, o que permitiu uma mais fácil disseminação por todo o mundo do que se tivessem sido de imediato tomados os cuidados necessários[1]. Isto também atrasou possíveis medidas que as autoridades de outros países poderiam adotar para proteger as populações. Poderiam, por exemplo, reforçar os stocks de equipamento de proteção individual para uso da população, como máscaras faciais, gel hidro-alcoólico ou luvas descartáveis; e também reforçar a capacidade dos sistemas de saúde, com stocks robustos de testes ao vírus, mais profissionais, mais camas, ventiladores e outro equipamento necessário.


O absurdo é que, decorridos cerca de dois meses de ser conhecida a nova epidemia e as suas consequências potencialmente devastadores, as autoridades europeias nada tinham acautelado. Deixaram o vírus alastrar e quando começaram a reagir estavam perante uma situação terrível, pois a produção de material sanitário na UE não é suficiente sequer para as suas necessidades em tempos de normalidade na saúde pública. Assim, sucederam-se os relatos de falta de equipamentos de proteção nos hospitais portugueses e de vários outros países, colocando em risco os profissionais de saúde quando mais são necessários e facilitando a disseminação do vírus por quem necessitava utilizar o sistema de saúde.


Não faz sentido pensar que os governos europeus não se aperceberam atempadamente da dimensão do problema. Desde o início do ano, a comunicação social (media) portuguesa noticiou insistentemente o que se passava em Wuhan, incluindo a cerca sanitária erigida em volta da cidade, que tem milhões de habitantes. Mas a generalidade dos governos europeus agiu como se aqui isso não pudesse ocorrer. Recentemente veio a público que o Governo de Espanha, em cinco ocasiões, não deu ouvidos aos alertas da OMS sobre os riscos do novo coronavírus, inclusive sobre a necessidade de reforçar stocks de material sanitário[2]. Se isto aconteceu com o Governo espanhol, provavelmente aconteceu também com outros governos europeus, inclusive o português, que foi apanhado desprevenido quando a epidemia começou a alastrar[3].


Além dos problemas nos hospitais, a falta de material de proteção impediu que os países tivessem podido adotar desde o início desta epidemia na Europa estratégias semelhantes às da Coreia do Sul ou de Singapura, que testaram sistematicamente quem tivesse estado em contato com pessoas infetadas, mesmo que não tivesse sintomas, e tinham máscaras suficientes para a generalidade da população. Isto permitiu conter o alastramento da epidemia com alguma rapidez, sem que esta alcançasse a dimensão trágica que assumiu em Itália e em Espanha. E permitiu também que não houvesse uma paralisação das atividades econômicas tão generalizada e prolongada como a que está a decorrer na UE.


Em Portugal, as autoridades não recomendaram o uso generalizado de máscaras protetoras faciais, dizendo que elas transmitem uma falsa sensação de segurança. Desde o início da epidemia, a Direção-Geral de Saúde apenas recomenda que sejam usadas máscaras por quem está comprovadamente infetado pelo vírus (além do pessoal médico), para desse modo impedir o contágio de outras pessoas. Ora, como é fácil de entender por qualquer criança de dez anos, se as máscaras impedem que uma pessoa infetada contagie os outros, então se todos usarmos máscaras o risco de contágio é muito reduzido.


Este discurso sem sentido das autoridades de saúde não contribui para a sua credibilidade, nem para a tranquilidade da população. A razão real para as autoridades europeias não recomendarem o uso universal de máscaras deverá ser a sua indisponibilidade no mercado e a falta de capacidade produtiva dos vários países. Aliás, à medida que o assunto vai sendo discutido na media e que a penúria de máscaras começa a diminuir, o discurso dos governos europeus sobre máscaras faciais começou a mudar, inclusive em Portugal. Qualquer pano que cubra nariz e boca diminui o risco de contágio, pois evita que sejam expelidas gotículas[4]. Aliás, o Governo austríaco foi o primeiro a anunciar um calendário para o início da normalização da vida social, impondo a obrigatoriedade do uso de máscaras em certas situações[5].


A Comissão Europeia, habitualmente muito rápida a fazer recomendações aos governos para cortarem despesa (arroxo fiscal) e diminuírem os serviços oferecidos às suas populações, em nome da competitividade em ambiente de globalização, nada disse publicamente sobre a necessidade de prevenir a crise sanitária e de preparar os sistemas de saúde para isso, ou sobre a necessidade de usar máscaras faciais. Aliás, a austeridade dos últimos dez anos nos países do Sul da Europa é uma das razões por que os sistemas de saúde da Itália e da Espanha ficaram rapidamente sem capacidade de resposta para todos os doentes em estado grave, tendo os médicos por vezes de escolher quais iriam tratar e quais iriam abandonar a uma morte quase certa – uma situação típica de países subdesenvolvidos.


Estas situações expuseram a dependência da UE e da generalidade dos seus países face à produção de equipamento de saúde e de medicamentos no exterior, sobretudo na China. E expuseram o perigo dessa dependência em contextos de crise, até porque começaram a surgir notícias de atos de pirataria internacional sobre equipamentos comprados por alguns países à China. A Turquia apreendeu material comprado pela Espanha à China cuja fase final da produção tinha sido feita na Turquia; e alguns países, como o Brasil, queixaram-se de que os EUA teriam desviado material médico comprado por eles.


Os riscos desta globalização não poderiam ser mais claros e esta situação de dependência do exterior em questões críticas como a segurança da saúde pública é uma das razões na base da intensificação do discurso de nacionalismo econômico na Europa, mesmo por parte de agentes que até aqui foram muito ativos na defesa de um liberalismo que transferiu grande parte da produção industrial europeia para a Ásia. Aliás, o fecho em força das fronteiras entre os Estados-membros da UE, quase sem coordenação entre si, é um dos sinais mais fortes da nova realidade, que deverá ser transitória, mas ainda sem prazo previsto para terminar.


Adicionalmente, devido à necessidade de isolamento social, muitas empresas europeias têm a sua atividade suspensa por decisão administrativa, sem que se saiba quando poderão retomar a laboração. Há setores em colapso, como a aviação, o turismo, a restauração; e também segmentos importantes da indústria, nomeadamente alemã, que dependem de fornecimentos da China entretanto suspensos no âmbito das medidas aí tomadas de isolamento social. Na ausência de uma resposta econômica e financeira muito robusta das autoridades, o cenário econômico para o que sucederá quando a epidemia estiver mais ou menos controlada, e começar a regressar alguma normalidade em termos de contatos sociais, não é o de uma recessão como a que se sucedeu à implosão do sistema financeiro dos EUA em 2008, mas a de uma depressão do tipo da que se seguiu ao colapso da Bolsa de Nova Iorque em 1929.


No caso de Portugal, o choque econômico será particularmente violento por várias razões. A atual paralisação da economia atinge muitos pequenos negócios familiares ou por vezes unipessoais, como cabeleireiros, restaurantes, cafés (que no Brasil são mais conhecidos por “padarias”), serviços turísticos, etc., intensivos em mão-de-obra barata. Apenas numa semana, mais de meio milhão de trabalhadores ficaram em lay-off[6] (uma suspensão temporária da prestação de trabalho, sendo o trabalhador enviado para casa com uma remuneração reduzida paga pelo Estado), beneficiando de uma simplificação deste processo que o Governo introduziu na sequência da paralisação de grande parte da economia.


Esta entrada maciça em inatividade é um prenúncio das muitas falências esperadas e de uma enorme subida do desemprego. A economia portuguesa ficou muito dependente do turismo, que nos anos mais recentes chegou a gerar perto de 15% do PIB e cerca de 10% do emprego, o que a coloca agora numa posição muito vulnerável, devido ao colapso do sector, por um período ainda indefinido. O Estado português adotou várias medidas de apoio às empresas, com vista a conter o aumento de desemprego, sobretudo facilidades de crédito e adiamento de obrigações fiscais, o que é particularmente útil para os sectores que têm uma perspetiva de retomada da atividade num prazo razoável. Para os outros setores – como o turismo e outros serviços prestados por pequenos negócios familiares – poderá ser um meio de ficarem ainda mais arruinados. Além de centradas no crédito, estas medidas têm um peso reduzido no PIB nacional, face às anunciadas por outros países.


O Governo português (e os de outros países da zona euro) tem no entanto uma boa razão para manter os seus apoios limitados a uma percentagem reduzida do PIB. Na sequência da crise financeira de 2008, a União Europeu disse aos países-membros que se endividassem para terem capacidade para gastar abundantemente e assim evitarem uma recessão ainda mais grave do que a que ocorreu em 2009. Devido a essa política, os países que tinham dívidas públicas mais elevadas foram atacados pelos mercados financeiros, que passaram a cobrar preços proibitivos, à medida que as várias emissões iam vencendo e era preciso ir ao mercado pedir mais dinheiro para rolar essa dívida. E durante cerca de dois anos o BCE nada fez em seu auxílio.


Nesse momento, deixou de haver uma ação coordenada solidária e os países com economias mais fortes impuseram condições muito duras aos países mais endividados (como Portugal, Grécia e Irlanda) para os resgates das três instituições que ficaram conhecidas como “troika”. Como já foi referido, essas condições implicaram cortes brutais na despesa dos Estados e desemprego maciço, debilitação de serviços públicos essenciais, como o de saúde, cuja fraqueza é agora uma das razões para a paralisação prolongada de muitas atividades econômicas.


Na situação atual, que tem alguns paralelos com economia de guerra, uma das respostas fundamentais à crise é a criação de dinheiro pelos bancos centrais de cada país, para financiarem os respetivos Estados e mesmo empresas, conforme já foi anunciado nos EUA[7] – onde o governo atual lançou a hipótese de colocar diretamente dinheiro nas contas dos cidadãos, sem exigir contrapartidas. Nos países que usam o euro, esta opção é inviabilizada pelos tratados em vigor, que impedem o BCE de emitir moeda para financiar diretamente os Estados.


O que tem sido discutido ao nível dos responsáveis máximos da zona euro – o Conselho de chefes de Estado e de Governo e o Eurogrupo – é apenas a possibilidade de endividamento solidários, através da emissão de dívida conjunta por todos os Estados da zona euro, através de obrigações cujo reembolso era assegurado por todos eles. Mas os estados com economias mais fortes e menos endividados e que têm beneficiado com o status quo opuseram-se firmemente a esta possibilidade – a Holanda, Alemanha, Áustria e Finlândia. Ao passarem a ser corresponsáveis pela dívida de outros países pois, estes países irão pagar um juro mais alto do que atualmente, enquanto os países atualmente já mais endividados do Sul, e com economias mais frágeis, pagariam juros menores.


Afastadas estas duas possibilidades, pelo menos de momento, o que se perspetiva para já é que o Eurogrupo (que reúne os ministros das Finanças dos países da zona euro) possa vir a adotar um conjunto de medidas que facilite o acesso a crédito barato num total de cerca de 500 bilhões de euros, através de várias instituições europeias. Este valor é muito reduzido face às necessidades. Só para a Alemanha, em março o seu Governo já tinha decidido um pacote de ajudas à sua economia de 750 bilhões de euros[8]. E o fato de ser crédito a conceder a cada país individualmente significa que a dívida pública aumentará e nalguns países ficará ainda mais insustentável numa perspetiva de mercado.


No fundo, os dirigentes europeus querem mudar alguma coisa para que o essencial fique na mesma. Poderá haver ainda alguma surpresa positiva, mas de momento afigura-se muito improvável. Assim, dentro de alguns meses, quando o funcionamento dos mercados financeiros eventualmente regressar a alguma normalidade, os países mais endividados correrão o sério risco de se verem numa situação semelhante à de 2010-2012, quando não conseguiam rolar as dívidas no mercado com juros razoáveis, ou ficaram mesmo sem acesso a financiamento nesses mercados, como aconteceu com a Grécia. Será então o momento de uma crise financeira, em cima da crise econômica que está a começar e quando a crise de saúde pública poderá não estar ainda completamente resolvida – um verdadeiro pandemônio.


Face a este risco, dirigentes italianos vieram dizer em público que ou há solidariedade ou a Itália resolverá a situação sozinha – uma ameaça de saída da zona euro que significaria o fim da moeda comum europeia e da própria UE. O primeiro-ministro de Espanha fez um apelo no mesmo sentido[9], tal como um dos presidentes históricos da Comissão Europeia[10], Jacques Delors, que fala em “perigo mortal” para a União.


É possível que estejamos apenas perante uma dramatização de posições num momento crítico e que depois (quase) tudo voltará ao status quo ante, como aconteceu após passar o fundo da crise de 2008 e das dívidas soberanas. Mas não parece muito seguro apostar nisso, até porque agora o contexto político-eleitoral é radicalmente diferente. A situação dramática da Itália poderá em próximas eleições facilmente reverter a favor da Mateo Salvini, o anterior vice-primeiro-ministro que não escondeu sua hostilidade ao euro. Numa sondagem realizada já depois de o Corona vírus ter colocado o país de pantanas, 67% dos italianos disseram ser desvantajoso pertencer à União Europeia[11].


Assim, o que se perspetiva como mais provável na UE é um retorno mais ou menos intenso a algum nacionalismo económico, quer dos seus países quer eventualmente do conjunto da UE face ao exterior, se esta sobreviver no contexto que se desenha. Seja como for, num mundo em que a própria globalização neoliberal estava em recuo acelerado – pense-se nas guerras comerciais, nomeadamente entre EUA e China, e no uso de sanções econômicas e financeiras pelo Ocidente como instrumento de geopolítica – isto representará um ponto de virada para um novo mundo em termos geoeconômicos.


Para os geógrafos, abrem-se novos desafios em termos de pesquisa que dê conta das novas realidades que irão impor-se. Por um lado, do ponto de vista da geografia econômica e do desenvolvimento, haverá toda uma nova realidade para mapear, de início talvez não tanto em termos de desenvolvimento desigual, mas de declínio desigual (para usar a expressão de Neil Smith [2008][12]), a várias escalas. E haverá também novas lógicas geopolíticas, bem como novas geografias políticas.



Notas:


* Fonte da imagem: John Hopkins University/Reprodução


[1] https://www.lemonde.fr/international/article/2020/04/06/il-ne-faut-pas-diffuser-cette-information-au-public-l-echec-du-systeme-de-detection-chinois_6035704_3210.html


[2] https://www.elmundo.es/espana/2020/04/02/5e862a5121efa005338b465b.html; https://www.elmundo.es/espana/2020/04/02/5e84fb84fc6c8384018b467f.html.


[3] https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2020/03/25/bater-palmas-nao-chega-proposta-para-a-crise/


[4] https://www.spiegel.de/international/germany/germany-is-failing-in-its-efforts-to-obtain-protective-gear-a-fd08b86c-7b3a-4ac2-b2fe-089f4490679c


[5] https://www.lemonde.fr/international/article/2020/04/06/l-autriche-premier-pays-d-europe-a-annoncer-une-reouverture-des-commerces_6035734_3210.html


[6] Público, 4 de abril de 2020 (https://www.publico.pt/2020/04/04/economia/noticia/layoff-atinge-552-mil-pessoas-semana-desde-fevereiro-despedidas-1471-1911020)


[7] https://www.lesechos.fr/idees-debats/editos-analyses/les-banques-centrales-vont-devoir-avaler-les-dettes-du-virus-1192046


[8] https://www.spiegel.de/international/germany/german-cabinet-agrees-to-750-billion-euros-in-emergency-aid-measures-a-9905ff76-c22d-4a9e-a3d4-c44633daf94e


[9] https://elpais.com/elpais/2020/04/04/opinion/1586022750_086446.html


[10] https://www.lefigaro.fr/politique/le-manque-de-solidarite-est-un-danger-mortel-pour-l-europe-selon-jacques-delors-20200328


[11] https://www.fanpage.it/politica/coronavirus-nei-sondaggi-sale-fiducia-nel-governo-conte-292-4-punti-in-un-mese/


[12] Smith, Neil (2008 [1984]), Uneven Development – Nature, Capital and the Production of Space. Terceira edição, com um novo prefácio de David Harvey, The University of Georgia Press, Athens e Londres.

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